Mordendo a maçã vermelha: ideologia, hegemonia e práticas escolares na obra inicial de Michael Apple

Bitting the Red Apple: Ideology, Hegemony and School Practices in the Initial Work from Michael Apple

Mordiendo la manzana roja: ideología, hegemonía y prácticas escolares en la obra inicial de Michael Apple

  • Romir de Oliveira Rodrigues Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Rio Grande do Sul- Campus Canoas
Publicado
2017-01-01

El artículo explora algunas reflexiones sobre cuestiones metodológicas incorporadas en el Proyecto de Doctorado “En el camino de curupira: el Programa Nacional de Acceso a la Enseñanza Técnica y Empleo y las relaciones público-privadas”, en desarrollo en la Universidad Federal de Rio Grande do Sul. Su objetivo es explorar la trilogía inicial de la obra de Michael Apple con el fin de analizar la concepción de ideología y hegemonía y cómo estas categorías contribuyen a la comprensión de las relaciones internas de las escuelas y aquellas con la sociedad. Al percibir las escuelas como espacios activos, atravesados por contradicciones y conflictos y fundados en una relación dialéctica entre la producción y la reproducción, Apple reafirma que estos son locales de conflictos, y por lo tanto, de posibilidades. 

Palabras clave: Ideology, hegemony, school practices, Michale Apple, Education Critical Theory. (en)
Ideología, Hegemonía, Prácticas escolares, Michael Apple, Teoría crítica de educación. (es)
Ideologia, Hegemonia, Práticas escolares, Michael Apple, Teoria Crítica de Educação. (pt)

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APA

Rodrigues, R. de O. (2017). Mordendo a maçã vermelha: ideologia, hegemonia e práticas escolares na obra inicial de Michael Apple. Pedagogía y Saberes, (46), 85.95. https://doi.org/10.17227/01212494.46pys85.95

ACM

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Rodrigues, R. de O. 2017. Mordendo a maçã vermelha: ideologia, hegemonia e práticas escolares na obra inicial de Michael Apple. Pedagogía y Saberes. 46 (ene. 2017), 85.95. DOI:https://doi.org/10.17227/01212494.46pys85.95.

ACS

(1)
Rodrigues, R. de O. Mordendo a maçã vermelha: ideologia, hegemonia e práticas escolares na obra inicial de Michael Apple. Pedagog. saberes 2017, 85.95.

ABNT

RODRIGUES, R. de O. Mordendo a maçã vermelha: ideologia, hegemonia e práticas escolares na obra inicial de Michael Apple. Pedagogía y Saberes, [S. l.], n. 46, p. 85.95, 2017. DOI: 10.17227/01212494.46pys85.95. Disponível em: https://revistas.pedagogica.edu.co/index.php/PYS/article/view/5231. Acesso em: 19 abr. 2024.

Chicago

Rodrigues, Romir de Oliveira. 2017. «Mordendo a maçã vermelha: ideologia, hegemonia e práticas escolares na obra inicial de Michael Apple». Pedagogía y Saberes, n.º 46 (enero):85.95. https://doi.org/10.17227/01212494.46pys85.95.

Harvard

Rodrigues, R. de O. (2017) «Mordendo a maçã vermelha: ideologia, hegemonia e práticas escolares na obra inicial de Michael Apple», Pedagogía y Saberes, (46), p. 85.95. doi: 10.17227/01212494.46pys85.95.

IEEE

[1]
R. de O. Rodrigues, «Mordendo a maçã vermelha: ideologia, hegemonia e práticas escolares na obra inicial de Michael Apple», Pedagog. saberes, n.º 46, p. 85.95, ene. 2017.

MLA

Rodrigues, R. de O. «Mordendo a maçã vermelha: ideologia, hegemonia e práticas escolares na obra inicial de Michael Apple». Pedagogía y Saberes, n.º 46, enero de 2017, p. 85.95, doi:10.17227/01212494.46pys85.95.

Turabian

Rodrigues, Romir de Oliveira. «Mordendo a maçã vermelha: ideologia, hegemonia e práticas escolares na obra inicial de Michael Apple». Pedagogía y Saberes, no. 46 (enero 1, 2017): 85.95. Accedido abril 19, 2024. https://revistas.pedagogica.edu.co/index.php/PYS/article/view/5231.

Vancouver

1.
Rodrigues R de O. Mordendo a maçã vermelha: ideologia, hegemonia e práticas escolares na obra inicial de Michael Apple. Pedagog. saberes [Internet]. 1 de enero de 2017 [citado 19 de abril de 2024];(46):85.95. Disponible en: https://revistas.pedagogica.edu.co/index.php/PYS/article/view/5231

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Artículo de investigación

Mordendo a maçã vermelha: ideologia, hegemonia e práticas escolares na obra inicial de Michael Apple*

Mordiendo la manzana roja: ideología, hegemonía y prácticas escolares en la obra inicial de Michael Apple

Bitting the Red Apple: Ideology, Hegemony and School Practices in the Initial Work from Michael Apple

Romir de Oliveira Rodrigues**

* Este texto faz parte do conjunto de reflexões que estão incorporadas ao Projeto de Pesquisa de Doutorado "No caminho do curupira: o Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego - Pronatec - e as relações público-privadas", em desenvolvimento na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, sob orientação da Professora Doutora Vera Maria Vidal Peroni.
** Magister en educación del a Universidade federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), profesor del Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Rio Grande do Sul- Campus Canoas, Brasil. E-mail: romirolirod@gmail.com Perfil ORCID: http://orcid.org/0000-0001-9224-5942.

Fecha de recepción: Junio 24 de 2016 Fecha de aprobación: Enero 24 de 2017


Resumo

Este artigo sistematiza algumas reflexões sobre questões metodológicas incorporadas ao Projeto de Pesquisa de Doutorado "No caminho do curupira: o Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego e as relações público-privadas", em desenvolvimento na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Busca explorar a trilogia inicial da obra de Michael Apple com o objetivo de analisar a concepção de ideologia e hegemonia e como estas categorias contribuem para a compreensão das relações internas das escolas e destas com a sociedade. Ao perceber as escolas e redes escolares como espaços ativos, atravessados por contradições e conflitos e fundados numa relação dialética produção-reprodução, Apple reafirma serem estes locais de disputa e, portanto, de possibilidades.

Palavras chave: Ideologia; Hegemonia; Práticas escolares; Michael Apple; Teoria Crítica de Educação.


Resumen

El artículo explora algunas reflexiones sobre cuestiones metodológicas incorporadas en el Proyecto de Doctorado "En el camino de curupira: el Programa Nacional de Acceso a la Enseñanza Técnica y Empleo y las relaciones público-privadas", en desarrollo en la Universidad Federal de Rio Grande do Sul. Su objetivo es explorar la trilogía inicial de la obra de Michael Apple con el fin de analizar la concepción de ideología y hegemonía y cómo estas categorías contribuyen a la comprensión de las relaciones internas de las escuelas y aquellas con la sociedad. Al percibir las escuelas como espacios activos, atravesados por contradicciones y conflictos y fundados en una relación dialéctica entre la producción y la reproducción, Apple reafirma que estos son locales de conflictos, y por lo tanto, de posibilidades.

Palabras clave: Ideología; Hegemonía; Prácticas escolares; Michael Apple; Teoría crítica de educación.


Abstract

This article presents some reflections on methodological approaches incorporated into the Doctoral Research Project "On Curupira's Path: the National Program for Access to Technical Education and Employment and the Public-private Relations" in development at the Federal University of Rio Grande do Sul. It seeks to analyze the initial Michael Apple trilogy, in order to investigate the conception of ideology and hegemony and how those categories contribute to the understanding of the internal relations between schools and their relations to society. Observing schools as active spaces, crossed by contradictions and conflicts and founded on a dialectical relation between production and reproduction, Apple reaffirms that schools are spaces of dispute and, therefore, of possibilities.

Key words: Ideology, hegemony, school practices, Michale Apple, Education Critical Theory.


Apesar de não ser identificada nenhuma citação a esta fruta no texto bíblico, algumas interpretações apontam para a maçã como símbolo do pecado e da tentação, por ter sido esta o veículo que teria levado a humanidade a desobedecer às ordens divinas e, desta forma, ser expulsa do paraíso. Porém, apesar dessa compreensão apresentar conotações negativas, nas várias significações registradas por Jean Chevalier em seu Dicionário de Símbolos, a maçã está relacionada "a um meio de conhecimento, tendo em vista que é fruto tanto da árvore da vida como é da árvore da ciência do bem e do mal" (Chevalier, 1986, 688). É nesta direção que a empresa Apple, uma das mais importantes no atual mercado de tecnologia, adota como seu símbolo uma maçã mordida significando, dentre outros possíveis sentidos, que saímos de uma vida contemplativa no paraíso, para enfrentar nossas escolhas como indivíduos e como humanidade, assumindo todos os riscos inerentes a esta travessia em busca do saber.

Esta aproximação com as diversas significações relacionadas com a maçã emergiu no processo de sis-tematização de algumas categorias presentes na obra inicial de Michael Apple, produzida ao longo da década de 1980, em especial na trilogia composta por Ideologia e currículo, Educação e poder e Trabalho docente e textos: economia política das relações de classe e de gênero em educação. Para além de uma vinculação linear com o nome do autor, a adoção da imagem da fruta da árvore do conhecimento do bem e do mal está articulada ao caráter de ruptura dessas obras em relação à produção teórica sobre educação então predominante -especialmente as ideias crítico-reprodutivistas1- e, concomitantemente, de retomada de importantes elementos da análise do materialismo histórico dialético. Ao morder a fruta oferecida por Apple na produção em foco, somos expulsos do paraíso da acomodação e naturalização de práticas e valores, somos tensionados a descobrir novos caminhos para compreender o processo educativo e as relações entre os diferentes sujeitos que o materializam cotidianamente, não só nas escolas, mas no conjunto da sociedade.

Neste sentido, o objetivo deste artigo é analisar a concepção de ideologia e hegemonia presente nas primeiras obras de Apple e como estas categorias possibilitam uma compreensão mais ampliada das relações internas das escolas e destas com a sociedade.

Visando avançar neste entendimento e desenvolver o objetivo proposto, este artigo está organizado em três partes. Inicialmente, serão explorados alguns elementos da proposta metodológica que Michael Apple desenvolve em sua trilogia inicial e como esta se articula com a perspectiva de entender os fenômenos sociais como uma totalidade e, desta forma, a emergência das categorias de ideologia e hegemonia para o desenvolvimento de suas investigações. Na segunda parte, com o aporte de outros autores, em especial Gramsci, Eagleton e Zizek, será feita uma abordagem de aspectos gerais destas categorias e como elas são concebidas por Apple em sua obra. É importante ressaltar que não se pretende fazer um estudo exaustivo das mesmas, o que fugiria do objetivo deste artigo, mas sim fornecer um lastro para a continuidade do mesmo. A terceira parte busca indagar como ideologia e hegemonia, enquanto categorias de análise, permitem uma leitura mais ampliada e relacional das práticas e ideias que organizam as redes escolares. Por último, nas considerações finais, serão apresentados alguns elementos sobre a pertinência das observações de Apple e sua proposta de trabalho teórico para a investigação do processo educativo na atualidade.

1. A impossibilidade de entender a maçã olhando apenas suas partes: aproximações metodológicas entre a análise relacional e totalidade

A emergência da ideologia e da hegemonia como categorias centrais na obra inicial de Apple está vinculada organicamente ao seu método de pesquisa no qual predomina o enfoque nas "mediações ideológicas e culturais que existem entre as condições materiais de uma sociedade desigual e a formação da consciência de seus indivíduos" (Apple, 2008, p. 36). Nesta perspectiva, o autor considera a escola como uma instituição em permanente movimento, mas referenciada em determinado tempo e espaço, cujos currículos são constituídos na dialética inclusão-exclusão de conhecimentos e práticas sendo, para isso, axiomático o papel desempenhado pelos educadores nestes processos. Apple denomina esta abordagem teórica de análise relacional, fundamentada no entendimento que as atividades sociais -e a educação é uma dessas atividades- constroem seus significados "pelas conexões e laços complexos com o modo pelo qual uma sociedade é organizada e controlada" (Apple, 2008, p. 44). Cabe destacar que, partindo deste ponto de vista, rompe-se com estruturas explicativas ancoradas na determinaçã da esfera econômica sobre as demais dimensões da vida social, reduzidas, estas últimas, a simples reflexos funcionais das relações sociais de produção. Ao contrário, reconhecendo os limites impostos pela esfera econômica, o autor afirma serem as práticas culturais e sociais "altamente mediadas pelas formas humanas de ação [...] pelas atividades, contradições e relações entre homens e mulheres de verdade [...] à medida que exercem suas atividades cotidianas nas instituições que organizam suas vidas" (Apple, 2008, p. 38).

Portanto, abordar um fenômeno da sociedade de forma relacional pressupõe considera-lo articulado a partir de dois aspectos principais. O primeiro é a necessidade de compreendê-lo como dotado de uma história que é, ao mesmo tempo, específica e articulada a outros movimentos de diferentes escalas em um permanente processo de mudança, ou seja, "as contradições, a mudança e o desenvolvimento são a norma e qualquer estrutura institucional é 'meramente' um estágio do processo" (Apple, 2008, p. 182). O segundo aspecto é avalia-lo não só pelos seus aspectos aparentes, mas, acima de tudo, pelas relações implícitas, normalmente opacas em uma primeira observação. Este movimento, de buscar as relações não evidentes é fundamental, pois como reforça Apple, "são de fato esses laços ou relações que fazem a matéria que se estuda ser o que é, dando-lhe seus significados primordiais. Dessa forma, nossa capacidade de esclarecer a interdependência e a interação de fatores expande-se consideravelmente" (Apple, 2008, p. 182).

Nesse sentido, a análise relacional está vinculada a uma tradição crítica na qual um fenômeno histórico só pode ser apreendido em seu movimento dialético, articulando a aparência com a essência, se for entendido como uma totalidade. Nas palavras de Kosik (2002, p. 44), trabalhar nesta perspectiva pressupõe apreender "a realidade como um todo estruturado, dialético, no qual ou do qual um fato qualquer (classes de fatos, conjunto de fatos) pode vir a ser racionalmente compreendido". Portanto, pensar como totalidade não implica na negação das partes pela valorização de um todo abstrato e inalcançável, mas a capacidade de dar sentido às partes quando relacionadas com um todo histórico. Para avançar nesta questão, Kosik afirma que

um fenômeno social é um fato histórico na medida em que é examinado como momento de um determinado todo; desempenha, portanto, uma função dupla, a única capaz dele fazer efetivamente um fato histórico: de um lado, definir a si mesmo, e de outro, definir o todo; ser ao mesmo tempo produtor e produto; ser revelador e ao mesmo tempo determinado; ser revelador e ao mesmo tempo decifrar a si mesmo; conquistar o próprio significado autêntico e ao mesmo tempo conferir um sentido a algo mais. (Kosik, 2002, p. 49).

A proposta de Apple de analisar as escolas e o processo educativo de forma relacional apoia-se no pressuposto da busca de construir totalizações, sempre provisórias, pois articulam fenômenos que operam em diferentes dimensões através do tempo, num processo ao qual são permanentemente incorporados novos elementos que, anteriormente, achavam-se obscurecidos. Como afirma o autor, existe uma limitação ao se compreender as escolas apenas da perspectiva do poder econômico, pois o capitalismo, no qual estão inseridos os sistemas educativos, e muito mais um modo de vida inteiro do que apenas um sistema econômico, ou seja, "precisamos ver nossa formação social como construída a partir de um conjunto constantemente cambiante e contraditório de interconexões entre as 'esferas' econômica, política e cultural" (Apple, 1995, p. 16).

É deste movimento de olhar para a escola e para os processos educativos de forma relacional que a ideologia e a hegemonia emergem como categorias centrais da análise desenvolvida por Apple em sua obra inicial. Agregar reflexões sobre estas categorias, em diálogo com outros autores, de forma a aprofundar a compreensão particular que Apple desenvolve em sua produção em foco é o objetivo da próxima parte do texto.

2. Quem define o gosto da maçã? Ideologia e hegemonia como categorias centrais na análise de Apple

Ideologia e hegemonia foram categorias de análise centrais não só na obra inicial de Michael Apple, objeto desta reflexão, mas mantiveram-se importantes ao longo de toda sua ativa produção teórica. Por mais que possuam conteúdos e gerem significados particulares, ao se utilizar destas categorias para perquirir as práticas das escolas e as relações destas com as demais dimensões da sociedade, muitos fenômenos e resultados comuns podem ser identificados. Ou seja, por mais multifacetada que a discussão sobre ideologia possa ser, da aceitação de que tudo é ideológico -coisas, valores, ações e discursos das pessoas e das instituições- até sua negação total -com o debate sobre vivermos em um momento histórico pós-ideológico- ela está organicamente articulada ao processo permanente de construção de hegemonia na sociedade. Se nas relações sociais elas atuam conjuntamente, por motivos de exposição e de garantia de evidenciar as nuances específicas, cada uma das categorias será qualificada separadamente, sendo posteriormente retomadas de forma articulada para analisar as relações internas e externas das escolas.

Neste sentido, a ideologia é uma categoria que possui muitas e contraditórias formas de interpretação e, muito mais do que chegar a uma definição última, a proposta e levantar alguns elementos que permitam apurar qual a concepção defendida por Apple no escopo das obras em foco. Considerado um dos principais teóricos contemporâneos, Slavoj Zizek, filósofo e psicanalista esloveno, tem desenvolvido uma produção que retoma e atualiza o debate sobre o papel fundamental da ideologia para o entendimento da organização da sociedade atual. Em sua perspectiva é possível afirmar "categoricamente a existência da ideologia qua matriz geradora que regula a relação entre o visível e o invisível, o imaginável e o inimaginável, bem como as mudanças nessa relação" (Zizek, 1996, p. 7). Reafirmando o caráter polissêmico do termo e compreendendo esta própria polissemia como uma forma de ocultação e negação da própria ideia, o autor retoma que ideologia

pode designar qualquer coisa, desde uma atitude contemplativa que desconhece sua dependência em relação à realidade social, até um conjunto de crenças voltado para a ação; desde o meio essencial em que indivíduos vivenciam suas relações com uma estrutura social até as ideias falsas que legitimam um poder político dominante. Ela parece surgir exatamente quando tentamos evitá-la e deixa de aparecer onde claramente se esperaria que existisse. (Zizek, 1996, p. 9).

Apesar de ser alvo de várias interpretações, alguns entendimentos acabam sendo predominantes, com destaque para a ideia de ideologia enquanto falsea-mento da realidade -numa linha teórica que vem de Hegel até Marx e Lukács (Eagleton, 1997). Refutando esta concepção por tratar-se de "uma representação equivocada e distorcida de seu conteúdo social" (Zizek, 1996, p. 12) e concordando que ela possui elementos não verdadeiros e muitas vezes ficcionais, Zizek destaca que, em seu conteúdo positivo, toda ideologia "pode ser 'verdadeira', muito precisa, pois o que realmente importa não é o conteúdo afirmado como tal, mas 'o modo como esse conteúdo se relaciona com a postura subjetiva envolvida em seu próprio processo de enunciação'" (Zizek, 1996, p. 13, grifos do autor). Ou seja, quando mais ocultas as estratégias para legitimar a dominação, por estarem carregadas de um conteúdo de "verdade" funcional, mais adentramos na esfera ideológica, pois, como lembra o autor, "é muito mais fácil mentir sob o disfarce da verdade" (Zizek, 1996, p. 14,).

Para desenvolver a noção de ideologia, o autor retoma a tríade proposta por Hegel do Em-si/Para-si/ Em-si-e-Para-si, sem estabelecer uma hierarquia entre esses elementos, mas percebendo-os em sua atuação conjunta. A ideologia "em-si", inseparável de sua própria definição, discute a noção de "doutrina, conjunto de ideias, crenças, conceitos e assim por diante, destinada a nos convencer de sua 'veracidade', mas, na verdade, servindo a algum inconfesso interesse particular do poder" (Zizek, 1996, p. 15). O "para-si" da ideologia está relacionado aos seus processos de exter-nalização e alteridade a partir da noção Althusseriana de Aparelhos Ideológicos de Estado, ou seja, propõe a existência de uma forma material da ideologia, consubstanciada, entre outros, em práticas, instituições, rituais e produtos culturais que, "longe de serem uma simples externalização secundária da crença íntima, representam os próprios mecanismos que a geram" (Zizek, 1996, p. 18). A terceira dimensão da ideologia, do "em-si-e-para-si", abarca "a rede elucidativa de pressupostos e atitudes implícitos, quase-'espontâneos', que formam um momento irredutível da reprodução de práticas 'não ideológicas' (econômicas, legais, políticas, sexuais, etc.)" (Zizek, 1996, p. 20-21).

Esta forma de compreender o fenômeno ideológico permite ao autor elaborar um conjunto de conclusões nas quais se destacam três aspectos. O primeiro é afirmar a pertinência e a concretude da ideologia, enquanto conjuntos articulados de ideias, valores e práticas que, de forma consciente e inconsciente, são experimentados cotidianamente pelas pessoas, ordenando a sua vida e, de certa forma, estabelecendo limites à percepção da existência destes próprios limites ordenatórios. O segundo aspecto é a necessidade de evitar a armadilha de tentar demarcar a separação entre o que é ideológico e a realidade efetiva, pois, desta forma, impõem-se "a conclusão de que a única postura não ideológica consiste em renunciar à noção mesma de realidade extra-ideológica, e em aceitar que tudo com que lidamos são ficções simbólicas, com uma pluralidade de universos discursivos, e nunca com a 'realidade''' (Zizek, 1996, p. 22). O último aspecto é que toda ideologia só se afirma ao distinguir-se de outra, julgada menor, menos complexa e, de certa forma, falsa, pois, "o indivíduo submetido à ideologia nunca pode dizer, para si mesmo, 'estou na ideologia'; ele sempre requer outro corpo de opiniões, para deste distinguir sua própria postura, 'verdadeira'" (Zizek, 1996, p. 25).

Associando-se ao debate, Terry Eagleton identifica seis maneiras diferentes de definir ideologia em uma escala que vai do menos para o mais nítido. A primeira, identificada com uma compreensão ampliada de cultura, se relaciona ao "processo material geral de produção de ideias, crenças e valores da vida social"

(Eagleton, 1997, p. 38), ou seja, mais focadas na forma como as pessoas vivenciam as práticas sociais do que na reflexão sobre estas práticas em si, que pertenceriam a outras dimensões, políticas, econômicas, etc. A segunda definição se vincula ao estabelecimento de um conjunto de ideias e crenças que, sem estarem presas a um critério de verdade universal, "simbolizam as condições e experiências de vida de um grupo ou classe específico, socialmente significativo" (Eagleton, 1997, p. 39). É importante ressaltar que a caracterização "socialmente significativa" é central, pois evita que, por exemplo, um grupo de amigos que se reúne periodicamente para jogar futebol e partilhe valores comuns possa ser identificada como detentores de uma ideologia própria.

Com a inclusão da perspectiva do conflito, entre ideologias em disputa, novas nuances são agregadas ao debate e se desdobram nas próximas definições. Desta forma, a terceira definição ressalta que, ao considerar a ideologia como a forma coletiva de auto-expressão de um grupo, trata-se de compreender como são promovidos e legitimados os interesses de determinados grupos sociais em relação aos demais. Neste sentido, a ideologia pode ser vista "como um campo discursivo no qual os poderes sociais que se autopromovem conflitam e colidem acerca de questões centrais para a reprodução do poder social como um todo" (Eagleton, 1997, p. 39). Também apontando para a promoção e legitimação de interesses de grupos específicos, porém focando-se nas atividades do poder central, a quarta definição tem o pressuposto central de que a ideologia dominante possui a capacidade de articular toda uma formação social de forma a privilegiar seus governantes, mas como lembra o autor, "não se trata apenas da imposição de ideias pelos que estão acima, mas de garantir a cumplicidade das classes e grupos subordinados" (Eagleton, 1997, p. 39). A quinta definição, intimamente articulada com a anterior, discute a ideologia como as ideias e crenças que contribuem para a legitimação do grupo ou classe dominante, mas aponta para a utilização da dissimulação e distorção como estratégias. A última definição enfatiza a ideologia a partir das "crenças falsas ou ilusórias, considerando-as, porém oriundas não dos interesses de uma classe dominante, mas da estrutura material do conjunto da sociedade como um todo" (Eagleton, 1997, p. 40).

É importante verificar que, em certo aspecto e vinculado a práticas, momentos e espaços específicos, todas essas concepções de ideologia possuem uma validade para o processo de elucidação das relações entre os grupos sociais, de que forma algumas ideias e crenças tornam-se prevalentes, como alicerçam a distribuição desigual de poder e contribuem diretamente para a manutenção da dominação de um grupo sobre outro em nossa sociedade. Deve-se, porém, de ter o cuidado para não estabelecer relações lineares e unívocas, que eliminem a contradição e a capacidade de agência das pessoas e dos grupos dominados. Como reforça Gramsci, "não se deve conceber a ideologia, a doutrina, como algo artificial e sobreposto mecanicamente (como uma roupa sobre a pele, ao contraria da pele que é organicamente produzida pelo organismo biológico animal)" (Gramsci, 2002, p. 199).

É também o pensador italiano que reforça a articulação entre a ideologia e hegemonia, sendo a última, consequência da confrontação entre ideologias entre si, que "lutam até que uma delas, ou pelo menos uma única combinação delas, tenda a prevalecer, a se impor, a se irradiar por toda a área social, determinando, além da unicidade dos fins econômicos e políticos, também a unidade intelectual e moral" (Gramsci, 2002, p. 41).

O conceito de hegemonia, uma das ideias-força da teoria de Gramsci e, possivelmente, a mais utilizada, apesar de algumas de suas transposições apenas tan-genciarem a complexidade de relações constituídas pelo intelectual italiano em sua elaboração. Um dos fatores que podem ser aludidos para a existência dessas várias interpretações está no fato de ser um conceito trabalhado ao longo da obra gramsciana que, conforme o processo histórico em análise acrescentava novas camadas de significados em um processo de construção permanente.

A ideia central da hegemonia trabalhada por Gramsci é, na análise de Luciano Gruppi (2000, p. 70), a "capacidade de unificar através da ideologia e de conservar unido um bloco social que não é homogêneo, mas sim marcado por profundas contradições de classe". Essa perspectiva remete para uma relação entre coerção e consenso, na qual o grupo dominante procura efetivar sua supremacia sobre as demais forças de uma determinada formação social. Como defende Marlene Ribeiro, é fundamental o estabelecimento de um consenso mínimo entre as classes, pois, apenas a partir do uso da força, no polo da coerção, as classes dirigentes não conseguem sua dominação e para isso é fundamental que as classes subalternas percebam "como justa e necessária a sua exploração e dominação. Essa 'costura' entre classes antagônicas e classes heterogêneas para a obtenção do consenso, que contribui para a reprodução das relações econômicas de produção, explica a hegemonia da classe burguesa" (Ribeiro, 1999, p. 68).

As operações hegemônicas não se dão, porém, de forma unidirecional do estrato hegemônico para as classes subalternas e, nesse sentido, Gramsci irá conceber a educação como elemento fundamental para o estabelecimento e manutenção da hegemonia, perpassando todas as relações sociais, ou seja, as práticas pedagógicas ultrapassam as especificamente escolares, são ativas e recíprocas e existem

[...] em toda a sociedade no seu conjunto e em todo indivíduo com relação aos outros indivíduos, entre camadas intelectuais e não intelectuais, entre governantes e governados, entre elites e seguidores, entre dirigentes e dirigidos, entre vanguardas e corpos de exército. Toda relação de "hegemonia" é necessariamente uma relação pedagógica, que se verifica não apenas no interior de uma nação, entre as diversas forças que a compõem, mas em todo o campo internacional e mundial, entre conjuntos de civilizações nacionais e continentais. (Gramsci, 2004, p. 399).

Desvendar estas relações dos processos pedagógicos na construção de ideologias e no estabelecimento e manutenção de hegemonias em uma sociedade de classes com poder desigualmente distribuído, é um dos principais focos da análise de Michael Apple em sua trilogia inicial. Para Apple, a definição de um conceito fechado de ideologia é uma tarefa difícil devido às várias compreensões historicamente construídas para o termo - muitas das quais exploradas anteriormente - porém, algumas características podem ser identificadas como axiomáticas, destacando-se que ela "sempre lida com a legitimação, o conflito de poder e um estilo especial de argumentação" (Apple, 2006, p. 54). Por incorporar essas diferentes características, a ideologia se consolida como um fenômeno complexo e que, para ser perquirido de forma rigorosa, deve ser abordado a partir de "seu papel duplo como conjunto de regras que dão significado e com a potência retórica em discussões sobre poder e recursos" (Apple, 2006, p. 55).

Dentre os elementos elencados pelo autor ao longo das obras em análise, três assumem uma posição de relevo visando à reflexão rigorosa sobre ideologia. O primeiro remete a necessidade de compreendê-la como categoria histórica que se modifica ao longo do tempo, inclusive absorvendo e adaptando ideias e valores das classes subalternas como forma de manter as relações de dominação da sociedade. Caracteriza-se, assim, por um fenômeno que, se não pode ser extinto de imediato, também não é pré-determinado a ponto de impedir que novas formas de organizar uma sociedade mais justa, solidária e ecológica possam se estabelecer. Por isso Apple reforça que as atuais relações culturais, políticas e econômicas que condenam a maior parte da população a posições subordinadas "precisam ser constantemente reforçadas, algumas vezes, infelizmente, através de nossas próprias ações inconscientes e, frequentemente, através da ação consciente dos grupos dominantes; do contrário elas começariam a ruir" (Apple, 2002, p. 7).

Desdobrando-se do anterior, o segundo elemento aponta para o papel ativo dos sujeitos na formação e conformação da ideologia, ou seja, "as relações dominantes são continuamente reconstituídas pelas ações que empreendemos e pelas decisões que tomamos em nossas próprias e pequenas áreas de vida local" (Apple, 1995, p. 98). Ao propor esta forma de analisar as relações entre os diferentes sujeitos que, consciente ou inconscientemente, participam do movimento dialético de manutenção/transformação das relações de dominação econômica, política e cultural, o autor evita o entendimento linear da ideologia como algo imposto desde fora, transformando as classes subalternas apenas em objetos que se movem ao bel-prazer dos grupos no poder. Ao contrário, reafirma que a dominação ideológica é reconstruída por nos mesmos "em nosso discurso cotidiano meramente pelo fato de seguir nossas necessidades e desejos comuns na tarefa de ganhar a vida, encontrar diversão e sustento e assim por diante" (Apple, 1995, p. 99). É importante observar que esta percepção, num primeiro olhar, pode levar a uma perspectiva fatalista e de imobilidade da estrutura social, pois remete para o fazer cotidiano das classes subalternas a reprodução da ideologia que as colocam em sua própria posição de subalternidade. Porém, ao longo da obra do autor -inclusive para além da produção em foco- é possível perceber que, no sentido oposto, a perspectiva afirmada é da ideologia como algo em disputa. Ao requerer um permanente trabalho de manutenção, desnaturaliza os valores que sustentam o domínio ideológico de uma classe sobre a outra e identifica uma brecha importante para a atuação das classes subalternas na busca de estabelecer, historicamente, novas relações econômicas, políticas e sociais.

O terceiro elemento para uma análise criteriosa da ideologia é sua relação com a distribuição do capital cultural, pois, este "é distribuído de forma desigual por meio da sociedade, e isso depende em grande parte da divisão do trabalho e do poder nessa mesma sociedade" (Apple, 2006, p. 68). Nesta direção, a escola "como agente bastante significativo da reprodução cultural e econômica, se torna, obviamente, uma instituição importante" (Apple, 2006, p. 66) e se aproxima da definição de aparelho ideológico do estado, pois exerce papel significativo na consolidação das relações de acumulação de capital e para a legitimação destas mesmas relações. O autor esclarece que muitas vezes as necessidades de acumulação e de legitimação entram em contradição no trabalho das escolas e que muitas dessas contradições não se originam no interior das mesmas, abrindo, desta forma, espaço para a reflexão sobre como a própria ideologia se consolida.

Ao buscar compreender esses mecanismos e estratégias de operação da ideologia, Apple incorpora a discussão sobre hegemonia e, retomando que ela não opera apenas no nível do comportamento macrossocial nem se restringe ao pensar de cada pessoa, afirma que ela se estabelece em nossas práticas cotidianas sendo "constituída pelo conjunto de ações e significados de senso comum que constituem o mundo social tal qual o conhecemos" (Apple, 2002, p. 55-56). Neste sentido, por estarmos situados em uma sociedade cindida em questões de classes, gênero e raciais, entre outras, que distribuem de forma desigual o poder, a hegemonia assume o caráter de processo em disputa, sendo que o domínio é obtido por "aquele grupo que consegue estabelecer os parâmetros dos termos do debate com aquele grupo que pode incorporar as reinvindicações antagônicas de outros grupos ao seu próprio discurso" (Apple, 1995, p. 24). Desta maneira, as formas básicas de funcionamento da sociedade são mantidas através do controle econômico e do poder, uma atuação que remete tanto ao macrossocial e as relações sócias de produção, quanto aos processos ideológicos, fundamentados na aceitação de valores, regras e pressuposições, sendo que, estes últimos, ocorrem predominantemente de forma não consciente, com a manipulação das próprias categorias e formas de pensar que utilizamos para interpretar o mundo.

Aprofundando esta questão, Apple faz o debate do papel central do estado na construção da hegemonia na sociedade capitalista, identificando que sua atuação, alcance e intervenção na economia e na sociedade são incrementais em relação ao processo de acumulação do capital. Porém, alerta o autor, o próprio estado é um espaço de disputa entre classes e grupos de interesse que incorpora o conjunto de conflitos sociais. Desta forma, o estado tem como estratégias para manter sua legitimidade obrigar todos a pensarem da mesma maneira -atuando exclusivamente no polo da coerção- ou buscar estabelecer alianças entre os diferentes grupos em disputa -apostando no polo do consenso. Para buscar esta via consensual e manter sua legitimidade, "o estado necessita integrar de forma gradual, mas contínua, muitos dos interesses dos grupos aliados e até mesmo dos grupos que se lhe opõem, sob sua bandeira" (Apple, 2002, p. 44). Desta forma, integrando demandas das classes populares com as empresarias, o estado consegue implantar um programa que se transfere para suas políticas públicas, favorecendo a intervenção estatal no interesse da acumulação do capital. Contraditoriamente, este mesmo movimento possibilita que as classes subalternas garantam direitos, mesmo mínimos, aos serviços sociais, como educação, saúde e seguridade social, além de assegurar legislações, como a trabalhista e a política de cotas que podem, no decorrer do processo histórico, tornarem-se vetores importantes para a transformação social.

Iniciando com uma caracterização ampla dos principais elementos do debate teórico sobre as categorias ideologia e hegemonia, esta sessão objetivou evidenciar a centralidade das mesmas na obra inicial de Michael Apple. Neste sentido salienta-se a perspectiva defendida pelo autor que ideologia e hegemonia são processos em permanente construção, históricos e, nessa perspectiva, passíveis de intervenção. Na próxima sessão será evidenciado como esses processos interagem nas práticas escolares, em especial na definição dos currículos.

3. A escola também planta maçãs: a dialética reprodução/ produção no espaço escolar

A discussão realizada por Michael Apple sobre ideologia e hegemonia emerge do trabalho de análise dos diversos processos que ocorriam na educação escolar no período histórico e geográfico com o qual as obras em foco dialogam. Este movimento permitiu que uma nova forma de compreender o papel da escola na reprodução/produção das relações sociais fosse sendo delineada. Em um duplo rompimento, a escola deixa de ser tanto um espaço neutro, regulado por critérios "científicos" e meritocráticos -característico das visões mais liberais- quanto um aparelho apenas reprodutor da ordem social vigente a serviço das classes dominantes -próprio das análises reprodutivistas.

Ao privilegiar a análise relacional, as tradições e modelos preponderantes nas escolas, articulados a partir de uma retórica de inovação, modernidade e eficácia, "disfarçam os valores reais, os interesses e o funcionamento social que estão em sua base" (Apple, 2006, p. 56). Desta forma, é nas práticas cotidianas no interior das escolas, envolvendo professores, estudantes e gestores, que se consolida a hegemonia, naturalizando valores, crenças e ideias, e não em uma imposição exclusivamente vinda desde o exterior. Mediando este conjunto de forças internas e externas, ancorada em noções do senso comum e posicionada como principal instituição entre as famílias e o mercado de trabalho, "não é estranho que, tanto historicamente quanto hoje, determinados significados sociais que tragam benefícios diferenciais sejam distribuídos nas escolas" (Apple, 2006, p. 88). Para além da constatação, Apple aponta que "os princípios orientadores que usamos para planejar, ordenar e avaliar nossa atividade -concepção de realizações, de sucesso e fracasso, de bons e maus alunos- são construtos sociais e econômicos"

(Apple, 2002, p. 180). Portanto, se não pertencem a nenhum grupo específico por serem socialmente construído; o fato de vivermos em uma sociedade na qual o poder é distribuído de forma desigual, faz com que esses princípios se relacionem notadamente com os requerimentos das classes dominantes.

De certa forma este processo é opaco para os diversos segmentos da comunidade escolar, incluindo os educadores, que, normalmente, não reconhecem serem suas ações balizadas por princípios julgados, num primeiro momento, como naturais, mas que efetivamente se desdobram em várias outras dimensões carregadas de contradições. Apple indica que isto ocorre pela dificuldade de perceber a

educação de forma relacional, como resultado de conflitos econômicos, políticos e culturais que historicamente emergiram nos Estados Unidos e em outros países, eles/elas [se referindo aos educadores/ as], com demasiada frequência, colocam as questões educacionais num compartimento estanque, que dificilmente concede espaço para a interação com as relações de classe, sexo e poder racial que dão à educação seu significado social. (Apple, 1995, p. 7).

É importante salientar o fato do autor não imputar a culpa exclusivamente aos próprios educadores por localizar a educação desta forma estanque, apesar de insistir na necessidade de instaurar um diálogo teórico crítico que os levem a perceber que estão "encapsula-dos em um contexto social e econômico que necessária e frequentemente produz os problemas com que os professores se deparam e as limitações materiais de suas respostas" (Apple, 2006, p. 97). Para isto, uma das estratégias é analisar criticamente o currículo da escola, identificar o que está prescrito e o que está oculto, este último considerado o "ensino tácito de normas, valores e inclinações aos alunos, ensino que permanece pelo simples fato de os alunos viverem e lidarem com as expectativas institucionais e rotinas das escolas todos os dias durante vários anos" (Apple, 2006, p. 48). É neste amálgama entre o currículo aberto, formado pelo conhecimento selecionado por determinadas classes sociais e repassado para o conjunto da sociedade como sendo legítimo, e o currículo oculto, entendido como o conjunto de valores, práticas e posturas naturalizadas, relacionadas ao senso comum e vividas no cotidiano escolar de forma, muitas vezes, inconsciente, que se torna mais evidenciada a construção ideológica e hegemônica da relação da escola com a manutenção do arranjo social vigente.

Da mesma forma que os educadores não são os limitadores exclusivos das práticas escolares e contrariando um discurso recorrente defendido pelos variados organismos internacionais e divulgado pelos meios de comunicação, também a educação não possui o toque de Midas que a tudo transforma, sendo seto-rialmente capaz de constituir-se como solução para os mais variados problemas sociais. De fato, o conjunto das iniquidades sociais que caracteriza nossa sociedade atual, como a exploração das classes subalternas, o aumento da violência e do desemprego, não pode ser restrito a uma questão do acesso e qualidade da educação, mas está relacionada com as "contradições estruturais geradas pela economia e pelo mercado de trabalho dual, do mesmo modo que por políticas governamentais que em grande parte reproduzem essas condições" (Apple, 1995, p. 135).

Mas se não é causa única da origem e da solução dos problemas sociais, os sistemas de ensino são parte fundamental e ativa deles, pois, devido a sua organização, além de trabalhar os conhecimentos legitimados como socialmente úteis, também "auxiliam na produção do conhecimento técnico/administrativo necessário, entre outras coisas, para expandir mercados, controlar a produção, o trabalho e as pessoas, produzir a pesquisa básica e aplicada exigida pela indústria e criar necessidades artificiais generalizadas entre a população" (Apple, 2002, p. 48). Portanto, o processo de escolarização deve ser interpretado tanto como um sistema de reprodução dos requerimentos demandados pelas classes dirigentes, vinculados à acumulação do capital e o ordenamento social necessário para sua permanente expansão, quanto um sistema de produção destas mesmas relações.

As escolas, portanto, devem ser vistas como espaços não homogêneos e caracterizados pela contradição e conflito devido à disputa permanente entre valores e crenças dos diferentes grupos sociais que, movidos por diferentes razões, a elas acessam e passam significativo tempo de suas vidas em seu interior. É inegável que prevalece no sistema educativo seu papel ativo na reprodução das relações de raça, gênero e classes sociais em nossa sociedade, porém, é importante salientar que "muitos dos resultados desses conflitos foram compromissos que significaram vitórias e não derrotas para a maioria das pessoas" (Apple, 1995, p. 48).

Essa percepção da escola como lugar da contradição e disputa, de reprodução e produção, no qual as classes dominantes devem, de forma permanente e intensiva, buscar construir sua hegemonia, rompe com formas anteriores de compreender a educação e torna-se uma das principais lições da trilogia inicial de Michael Apple. Buscar estabelecer outras relações entre os temas presentes nestas obras, sem a preocupação de esgotar as demais possibilidades de leitura, é o objetivo da última sessão que aponta algumas considerações finais.

4. Digerindo a maçã vermelha: se a escola é espaço de disputa, vamos conquistá-la!

A obra inicial de Apple possui uma capacidade heurística que ultrapassa as limitações do tempo e do espaço a qual ela se refere mantendo-se ainda pertinente e dialogando com as principais questões educacionais da atualidade. A partir da análise de processos que começavam a se insinuar no momento de sua escrita, a obra indica possibilidades que se consolidaram ao longo do processo histórico como a supremacia das formas gerenciais de organizar a educação, a padronização dos currículos e a constituição de uma lógica de competição entre as escolas a partir do estabelecimento dos exames de larga escala, a preocupação com a precarização do trabalho docente relacionado ao uso intensivo das novas tecnologias e a diminuição dos espaços democráticos de participação nas instituições de ensino e na sociedade.

Muito mais do que qualquer poder visionário é a metodologia de pesquisa adotada que considera o fenômeno social em sua totalidade, procurando relacionar suas várias dimensões e evidenciando suas contradições que possibilitou o autor a elaborar suas conclusões e elaborar linhas de possibilidade que, posteriormente, mostraram-se efetivas. Para isto, o autor partiu da análise das praticas das escolas, procurando trabalhar a partir das várias contradições que nelas se evidenciavam e reconhecendo, naquela particularidade, os elementos singulares que permitiram criar relações universais. Este processo foi denominado por Apple como análise relacional e estava ancorado, entre outros elementos, na percepção histórica dos fenômenos, num movimento permanente entre macro e micro estruturas e no trabalho a partir de categorias de análise que surgem no transcorrer do próprio processo de análise.

Portanto, ideologia e hegemonia, categorias centrais para a compreensão do conjunto das obras em foco, originaram-se a partir do trabalho com os dados empíricos e com o trabalho com fontes primárias e secundárias. A questão central é enfatizar que, enquanto categorias de análise, elas não estavam definidas a priori, mas, metodologicamente, emergem da busca por compreender e relacionar as múltiplas determinações do fenômeno em investigação. Mais importante do que estabelecer uma definição sobre o conceito desenvolvido por Apple para ideologia e hegemonia é entender seu papel de categorias que permitem articular a vida escolar com aspectos econômicos, sociais, políticos e culturais que fundamentam o sistema do capital.

Desta forma, a escola é interpretada como um espaço ativo na reprodução das relações que garantem a acumulação e expansão do capital e, ao mesmo tempo, na produção destas mesmas relações. Nesta direção, a escola passa a ser atravessada por contradições e conflitos, torna-se um local de disputas por valores e crenças entre os diferentes grupos em seu interior e, portanto, em movimento. É necessário resgatar que tanto a sociedade investigada na obra inicial de Apple quanto na que vivemos atualmente, caracterizadas pela distribuição desigual do poder, os aspectos que privilegiam o atendimento dos requerimentos das classes dominantes são predominantes no cotidiano escolar. Porém, um passo fundamental para realizar a crítica a este processo é, exatamente, torna-lo explicito, ou seja, desnaturalizar os princípios que organizam os diferentes aspectos das práticas das escolas -como o planejamento, a avaliação e a definição de critérios para qualificar alunos e professores como bons ou maus.

Evidenciar o que está oculto, procurar descobrir as origens das práticas que realizamos cotidianamente e estabelecer o maior número possível de relações entre o cotidiano escolar e as outras dimensões da vida, entre outros elementos, são itens centrais na agenda dos professores progressistas. Neste sentido, a obra de Apple torna-se uma importante ferramenta para a construção de outra forma de pensar sobre a educação e as práticas da escola, que deixam de ser "neutras" ou "científicas" e passam a estar relacionadas às contradições universais, em especial, entre capital e trabalho, que perfazem nossa sociedade atual. Sem tentar dar resposta, Apple instiga aos professores progressistas a procurar novas respostas para novos problemas, antes ocultos, a somarem suas reflexões e práticas com outras desenvolvidas nos mais variados lugares -atividade que o autor se ocupa efetivamente nas suas últimas obras.

Retomando a imagem inicial, morder a maçã oferecida ao longo da trilogia em análise é aceitar o conhecimento que desacomoda, é optar por percorrer novos caminhos para ousar colocar-se em movimento, princípio primeiro de qualquer transformação. Se, nos dias atuais, novos paraísos se constituem estendendo artificialmente o presente e prendendo as pessoas a um viver de múltiplas opções pré-determinadas, o diálogo com Apple nos instiga a reconhecer a história como possibilidade, a escola como espaço de disputa e a reafirmar que novas relações, mais justas, solidárias e ecológicas são possíveis. No atual horizonte de normatização de todas as dimensões da vida às demandas do capital, quando falam em fim da história e sociedades pós-ideológicas, a proposta de interpretação desenvolvida na trilogia em foco carrega uma pulsão revolucionária. Sem dúvida, a maçã que Apple nos oferece é vermelha.


Notas

1 Segundo André Wagner Rodrigues (2011), "os críticos-reprodutivistas acreditavam [...] que a escola formal exerce o papel de reprodutora da sociedade de classes, reforçadora do modo de produção capitalista e, por isso mesmo, repressora, autoritária e inculcadora da ideologia dominante". Destacam-se a obra de Pierre Bourdieu e Jean-Claude Passeron, bem como as reflexões de Louis Althusser e a noção de 'Aparelho ideológico do Estado".


Referências

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